terça-feira, 19 de outubro de 2010 | By: Julia Mendes

mais sobre o Nada

segue um texto que talvez sirva de ungüento para nossa Tróia.

Juba

"O Testemunho dos Mortos" - Cecília Meireles

Esta noite lerás os poemas de todos os poetas que já viveram. Tua voz será dócil e bela, oscilando a todos os ritmos como um ramo carregado de flores. E a noite se transformará, quando fores falando, povoando-se de astros maiores, transbordantes de eternidade.
Tua música percorrerá minha tristeza inutilmente. Ficarei, como estou, sem consolação. Nenhuma alheia canção vale aquela que eu não pude cantar. Ela era a mesma que os outros não cantaram. A única. Todas as outras são as tentativas de que nunca se modulou.
E agora esta doce amargura de ficar escutando profundamente. Debruço-me à beira da tua voz. E é como numa praia sem luzes, onde o mar infinito resvala onda por onda nas nossas mãos.
Não vejo cores, não vejo formas, nem movimentos, nem a cadência que os veste. Escuto o sonho, de olhos fechados. Escuto-o com toda a minha vida parada, imóvel sobre a noite, como quem estava morto, e acordou de repente e investiga a quantidade de mundo que existe em redor de si.
Posso dizer-te que estive em todas as partes da Terra, que fui todas as criaturas que viveram, que sei todas as coisas que elas disseram. E a minha solidão é mais terrível, pois, de tanto viver dispersa, estou sem mim.

Do fundo de todos os oceanos mortos vêm até nós esta noite, leves como nuvens, claros como mares, tão leves e claros que o vento os atravessa e o murmúrio das ondas desenha a sua curva sonora sem nenhuma alteração.
Eu também ficarei diante deles sem a mais vaga inquietude. E eles contemplarão minha alma silenciosa, identificada com o seu longínquo viver, pisando facilmente seus caminhos esquivos, e em suas atmosferas florindo sem apreensões.
E eu serei para eles como um companheiro desconhecido, o mais estranho de todos, o que ficou para sempre entre a vida e a morte, pertencendo igualmente a ambas e não possuindo nenhuma.
Todas as visões dormiram em nossos olhos, em abolidos tempos. Correram pelos nossos ouvidos palavras, soluços, cânticos. As experiências estiveram em volta de nós, em compactos bandos. Tudo nos encontrou desencantados. Onde estavam as mãos para receber? Oh! tão longe, tão longe! Como nas lendas de bruxedo, tinham fugido do corpo, andavam revolvendo mistérios, semeando perguntas ardentes, cegando searas fantásticas, providas e tumultuosas como incêndios.
Voltaram muito tarde, e transbordantes. Tinha passado a hora das dádivas simples. Encontramo-nos sozinhos com a sua colheita, deslumbradora, terrificante, de nunca vista.
Mas quando quisemos erguer entre todas as coisas aparecidas, vimos que era maior que o espaço que vai da terra ao céu. Não encontramos nos ares uma passagem para o tamanho da nossa prosperidade.
Tivemos de submergi-la em nós mesmos e assistir ao espetáculo desse naufrágio voluntário. Quando foi que ouviste falar de uma aventura assim?
Depois disto, todas as coisas são mínimas.
Se chamasses um exército que enchesse de frente todo o horizonte, e que viesse todo para ferir só a mim, todas as suas armas em vão procurariam na minha existência um lugar vulnerável à dor. Não se encontra.
Se chamasses os mais hábeis salteadores e lhes dissesses: "Tirai-lhe alguma coisa que não se lhe possa arrancar sem que o seu coração se quebre: que abale a sua vida, e que apresse a morte!" Eles responderiam desanimados: "Nem a perda da própria vida lhe traria transtorno. Sua natureza é inacessível."
Os mortos regressarão surpreendidos aos seus domínios, com mais perguntas desabrochando em seu caminho que as ondas que desabrocham no mar. Terão conhecido um fantasma diferente, e mais temível que os seus em frente aos dias dos vivos.
A lua se gastará pelo céu noite a noite: não espere que de ninguém, de perto ou de longe, deste mundo ou de qualquer outro, possa chegar alguma coisa que repare o sofrimento.
Do alto do tempo acontece cair a lâmina que separa a terra em vida e morte. De um lado e de outro é o mesmo. A passagem, sim, que é diversa e difícil. Todos hão de ficar sabendo, ó destino, que nessa passagem me colocaste, sem mais ninguém. Pois aí persevero em ficar.
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